Os Cabra evitam a popularidade, rejeitam a sensaτπo de serem o centro de atenτπo, recusando fazer parte da gente conhecida. Franz Kafka foi um grande desconhecido para toda uma cidade, para todo um continente, para toda uma Θpoca e, no entanto, foi o melhor definidor de todo o nosso universo no perφodo triste da entre-guerra, da subida dos totalitarismos e da preparaτπo da matanτa em massa.
Pelos vistos, para os Cabra nπo hß forma de escapar a todas as circunstΓncias que se chamarπo depois, para simplificar, destino. Franz Kafka teve que suportar a doenτa dos seus dias, a dureza de uma religiπo familiar, o triste ambiente social da sua gente, o acosso da vulgaridade de um trabalho sem graτa e de uma cidade, a sua Praga sem encanto. Teve que ajustar-se aos limites do seu destino, tπo similares ao de milh⌡es de seres englobados nas mesmas coordenadas de tempo e lugar, sem poder escolher senπo na direτπo infinita, mas solitßria, da sua tarefa de descriτπo do indescritφvel. Ap≤s a sua morte, muito depois, o seu apelido jß serve para designar -perfeitamente- o absurdo mundo em que estamos imersos. Chamamos kafkiano ao mundo quotidiano porque este se escapa da razπo simples, da l≤gica simples, e entra na ≤rbita dos mecanismos desconhecidos. Um nome, sem sentido fora da famφlia, se converte no c·mulo de significados que explicam, a priori, os imensos horrores criados pelo homem para enfrentar-se ao homem. Este humilde Cabra teve que batizar a sinistra criatura da sem-razπo e fΩ-lo sem que o autor pudesse sequer suspeitar a importΓncia do seu pr≤prio apelido quando ele jß nπo estava presente. Franz Kafka chegou a pedir ao seu mais querido amigo que a sua obra ficasse inΘdita em parte, que se destruφsse grande n·mero dos seus originais, que aquelas reflex⌡es tπo φntimas nunca chegassem α vista de pessoas alheias ao mφnimo cφrculo dos seus amigos. A sua modΘstia lhe fazia exigir esse ato de pudor posterior, para que nada ficasse, como ele julgava possφvel, da sua passagem pela terra.
E, como os humildes e nada brilhantes Cabra, Franz Kafka foi um empregado modelo, um homem que realizou perfeitamente o seu trabalho e que gozava fazendo-o bem. Nπo Θ um Dragπo que tem que conformar-se com a sua negra sorte, ou um Cavalo que nπo pode exibir-se. Antes pelo contrßrio, o Cabra cumpre com discreτπo e elegΓncia a funτπo que lhe correspondeu e nπo se rebela contra essa obrigaτπo, porque forma faz da sua forma de ver as coisas, de fazΩ-las segundo o rito e o protocolo. Inclusive na sua mansidπo havia mais outra virtude: a de desprezar a pompa e a ostentaτπo na criaτπo literßria, sem poder suportar os famosos escritores acadΩmicos do momento, que odiava cordialmente, como bem dizia nas suas cartas a Felice Bauer, o seu amor e a sua correspondente dißria. Com certeza, ele nπo podia conviver tranqⁿilamente com um mundo tπo afetado e ancorado na tradiτπo como aquela Europa Central dos princφpio do sΘculo, numa belle epoque que nπo o era tanto nos dias pr≤ximos α Grande Guerra e que ainda seria mais problemßtica durante ela e depois dela.
Os Cabra sπo gente realista por cima de tudo. Nπo se deixam embalar em sonhos belos, se sπo falsos, nem se evadem com ciladas, por doces que pareτam. A realidade de Franz Kafka Θ muito mais rica do que a da imensa maioria dos seus contemporΓneos e do que a dos seus sucessores, com certeza. A sua realidade, que aparentemente Θ um sonho da razπo, Θ simplesmente uma radiografia profunda e certa de toda uma era da hist≤ria. Essa radiografia Θ a anßlise certa e exata de um momento da nossa vida, como Humanidade, em que o homem escapa da mesura e fica apanhado numa rede complexa e inumana onde nada se faz gratuitamente, porque o que nπo faz sentido -aparentemente- tem uma razπo de ser. Foram os invisφveis senhores os que montaram a grande cerim⌠nia da confusπo, mas nπo por capricho ou por vφcio, como Calφgulas de hoje, senπo pela necessidade de ter uma contφnua cortina de fumo atrßs da qual se desvaneτam as suas verdadeiras intenτ⌡es e se desbotem as verdadeiras metas a alcanτar.
Este sentido kafkiano da realidade nπo o parece α primeira vista e se poderia supor, em muitas ocasi⌡es, que Franz Kafka Θ o rei do pesadelo, o maior criador da ficτπo fantßstica. Os Cabra sπo gente cΘptica, mas sπo nπo por abandono da forτa em pr≤ da verdade, senπo pelo seu realismo, pelo conhecimento φntimo que tΩm deles pr≤prios, dos seus camaradas e dos seus inimigos.
CABRAS C╔LEBRES
Lech Walesa, Balzac, Miguel de Cervantes, Simone de Beauvoir, Miguel ┬ngelo, Marcel Proust, Tirso de Molina, Mark Twain, Groucho Marx, Beatriz Galindo, Eva Per≤n, John Ford, CΘsar Borgia, James Dean, Liszt, Paul Valery, Mussolini...